segunda-feira, 2 de março de 2009

Homilia I Domingo da Quaresma


1. A Quaresma é um tempo que convida os cristãos e as comunidades cristãs a rever a sua vida e os seus compromissos à luz da vida nova recebida no Baptismo. O Baptismo celebrado na água e no Espírito marca a direcção e o ritmo da vida tanto pessoal como comunitária de todos os cristãos e suas comunidades de Fé.
Quando a Quaresma faz apelo a uma oração mais intensa, ao jejum, à esmola e ao encontro mais frequente com a Palavra de Deus concretiza o que deve ser a vida de todo o Baptizado. Por sua vez, quando nos lembra a obrigação de dedicarmos mais tempo ao aprofundamento da Fé quer através de acções de formação quer através de tempos fortes de oração como são os retiros, a Quaresma continua a ajudar-nos a assumir as nossas responsabilidades de Baptizados. Também a própria sociedade em geral pode beneficiar deste tempo da Quaresma entendido como tempo de alguma paragem para repensar a vida e redefinir os seus caminhos para que sejam sempre caminhos de verdadeira humanização

2. A Palavra de Deus hoje proclamada na assembleia do domingo começa por recordar o facto de Deus ter salvo Noé e a sua família das águas do dilúvio. Estas águas acabaram por ser purificadoras e instrumento de salvação. A partir delas Deus pôde fazer com os homens uma aliança de paz simbolizada no arco íris. S. Pedro apresenta-nos hoje, na sua I carta, a figura de Cristo libertador no contexto de uma catequese sobre o Baptismo. De facto pelo Baptismo na água e no Espírito, cada Baptizado fica configurado com Cristo, porque nele acaba o homem velho e começa o homem novo, liberto do pecado e tornado Filho de Deus. No Evangelho de Marcos é-nos apresentado Jesus a ser conduzido pelo Espírito ao deserto, onde preparou, durante 40dias a Sua Vida Pública. É o mesmo Espírito que conduz os cristãos e as comunidades cristãs para o deserto da vida, onde como Cristo, estão sujeitos a muitas tentações, mas também onde são chamados a cumprir a missão de anunciar Cristo Ressuscitado, capaz de transformar o mundo.

3. E é neste mundo concreto onde o Espírito constantemente nos conduz que queremos exercer a nossa responsabilidade do diálogo social para encontrar os verdadeiros caminhos por onde se cumpre a dignidade de todos e de cada um dos seres humanos. E neste diálogo social a primeira pergunta a que temos de responder é a seguinte: O que é o ser humano e como é que ele deve organizar o seu agir no mundo?
De facto, a grande pergunta que todos e cada um de nós temos de colocar e à qual estamos obrigados a responder é a pergunta pela nossa identidade pessoal e pela missão que temos de cumprir no mundo. Quem somos nós, homens e mulheres que habitamos esta terra qual é a nossa missão no mundo?
Numa primeira observação, sentimo-nos muito importantes, porque chamados para grandes ideais e capazes de fazer grades coisas, mas os factos mostram que também grandes males e mesmo muitas catástrofes se deveram a decisões erradas tomadas por seres humanos. Daqui concluímos, que a nossa condição é grande e nobre, mas também que a nossa grandeza é relativa e por isso nunca podemos considerar-nos senhores absolutos da vida e da história.
Para nos ajudar a decifrar este enigma, a Revelação cristã diz que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus e nisto consiste a sua grandeza; mas diz também que, desde o início cedeu à tentação do pecado, o qual desencadeou na história do mundo um processo de confusão e de sofrimento imparáveis.
Diz mais a Revelação cristã que Cristo é o modelo perfeito e completo do ser humano, na sua grandeza e dignidade, porque Filho de Deus. Ele veio restaurar a completa dignidade humana, oferecendo a cada homem e a cada mulher a possibilidade de recuperarem na sua vida pessoal e comunitária a integridade original perdida.
Cada um de nós, na medida em que quiser levar a sério a sua verdade pessoal e a verdade do mundo sente necessidade e obrigação de definir e decidir o seu caminho de vida. E só pode ficar contente se esse caminho de vida definido e levado à prática promover o seu bem pessoal, o bem dos outros e o bem do próprio mundo.
Ao tentar definir esse caminho cada um de nós sente-se dono de si mesmo e com capacidade de escolher. Este é o valor sublime de liberdade.
Mas sente também que tem de responder perante si mesmo, perante os outros e perante a própria natureza, pelas decisões que toma, pelos actos que as levam à prática e também pelos efeitos maus ou bons que eles provocam nos outros e no mundo. Estamos perante o bem supremo da responsabilidade.
No exercício da sua liberdade e responsabilidade, quando tenta definir o seu caminho de vida para construção do seu bem pessoal e o bem dos outros, mas sente que tem de respeitar regras que ele próprio não criou. Sente que essas regras são anteriores às suas decisões e algumas mesmo anteriores a qualquer decisão humana, porque regulam a natureza e o mundo. Pela inteligência e pela razão, ele pode identificar essas leis básicas da sua constituição pessoal e da constituição do próprio mundo. Pela consciência moral, ele sente necessidade de fazer dessas regras básicas a lei da sua própria vida, no exercício da liberdade e responsabilidade. Por sua vez, o Código das leis, seja o das leis civis ou canónicas, seja mesmo o das leis morais, é posterior a esta experiência básica da necessidade que todo o ser humano tem de configurar o seu comportamento com a verdade das pessoas, da história e do mundo. Cada um de nós vive uma moral libertadora quando organiza a sua vida, com liberdade e responsabilidade, no respeito pela verdade e pelas exigências implicadas na construção do bem pessoal e social. Vive moral de escravo quando ignora, propositadamente ou não, a verdade que se lhe impõe e pura e simplesmente cumpre as leis que o obrigam como sendo um jugo ou camisa de forças.
Jesus Cristo, porque imagem perfeita de Deus Pai e modelo ou primogénito de toda a criatura veio revelar o ser humano na sua perfeita identidade.
Por isso, o seguimento de Cristo e a moral do seguimento de Cristo é o caminho mais eficaz para os seus discípulos cumprirem a sua identidade e ajudarem todos os outros seres humanos a progredirem também em humanidade.
A verdade e nunca mentira, mesmo quando é agradável aos sentidos e aos interesses passageiros de pessoas e de grupos, é que tem de ser sempre o critério para as decisões e os comportamentos das pessoas em geral.
Como em Cristo se revela a verdade em todo o seu esplendor, o seguimento de Cristo é sempre caminho de libertação.
Quando nos educamos a nós próprios e em sociedade nos preocupamos com a educação de todos para comportamentos que dão dignidade à Pessoa e às suas relações em sociedade é preciso, em primeiro lugar, procurar saber que liberdade queremos para nós e para os outros. E só há liberdade quando as pessoas se empenham na procura da verdade e na procura dos caminhos por onde a mesma verdade se pode cumprir na vida dos indivíduos e da própria comunidade.
Por sua vez, a educação para o exercício da responsabilidade pessoal e colectiva é outro factor decisivo para o bem das pessoas e para o progresso da sociedade.
Que Deus nos ajude a viver esta Quaresma na procura constante do bem e da verdade, para nosso crescimento pessoal e da própria sociedade.

Sé da Guarda, 1 de Março de 2009

+ Manuel R. Felício, Bispo da Guarda

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