segunda-feira, 30 de março de 2009

V Catequese Quaresmal de D. Manuel Felício

"Pelo sofrimento e pela morte à Ressurreição e à Vida”

1.Celebramos o V Domingo da quaresma e também iniciamos a primeira das duas semanas que especialmente nos convidam a contemplar o mistério da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. Por isso, este domingo tradicionalmente é chamado o lº domingo da paixão. A Paixão, a morte e a Ressurreição de Cristo são o mistério que vai estar especialmente presente na celebração do próximo Tríduo Pascal; mas, a partir de hoje, nós somos, com particular insistência, interpelados pela Palavra de Deus a dispormo-nos pessoal e comunitariamente para mergulhar no coração deste mesmo mistério e, nele e por ele, nos deixamos transformar para virmos a ser criaturas novas em Cristo Ressuscitado.
2. A primeira leitura, como aconteceu já em cada um dos 4 domingos anteriores, continua a falar-nos da Aliança com Deus; só que, desta vez, fala-nos de uma Nova Aliança. Essa nova aliança não está ligada a actos de culto especiais, nem aos símbolos normais das alianças entre povos e grupos humanos. Essa Nova Aliança é união com Deus coração a coração. Sabemos que essa Nova Aliança foi inaugurada na Pessoa de Jesus Cristo. Como diz hoje a carta aos Hebreus, Jesus Cristo, apesar de ser Filho, e o Filho único de Deus, Viveu a obediência ao Pai através do sofrimento e por este caminho tornou-se para todos os que lhe obedecem causa de Salvação eterna. Temos aqui um convite explícito a meditar, ao longo dos dias que imediatamente nos preparam para a Páscoa, a morte Redentora de Nosso Senhor Jesus Cristo. E a primeira pergunta que a nossa sensibilidade nos faz é a seguinte: será que do sofrimento e da morte poderá vir alguma coisa boa? Por outras palavras, o sofrimento e a morte, a que todos inexoravelmente estamos sujeitos, poderão ter algum sentido positivo? O Evangelho de S. João hoje dá a resposta com uma parábola primeiro e depois com a experiência única de Jesus Cristo. O sofrimento e a morte são como o grão de trigo lançado à terra. Este tem de deixar-se destruir e morrer para dele resultar muito fruto.
A primeira conclusão que o Evangelho tira é sobre o sentido da nossa vida e sobre a verdadeira compreensão do que é viver. Dar a vida, como Jesus Cristo fez, pelo bem dos outros e da comunidade é o único caminho que dignifica qualquer ser humano. E o testemunho do próprio Deus sobre Jesus a caminho da morte na cruz é eloquente. A cruz é para Cristo lugar de glorificação, porque nela Ele oferece a Sua Vida para salvação de toda a Humanidade.
3. O caminho de Redenção que Jesus a todos aponta é aquele em que cada um de nós vive o sofrimento e a morte, que são inevitáveis, envolvidos pela esperança da Ressurreição e da Vida.
Cada um de nós, se souber parar por momentos diante do seu mistério pessoal, sente-se chamado para a vida e não para a morte; pelo menos sente que a vida é o maior bem que lhe podia ser dado e a este bem todos os outros devem ser subordinados. Mas sente também que não é qualquer vida que lhe interessa, mas somente a vida vivida na verdade e na Justiça.
3.1.Viver na verdade, procurar a verdade e recusar a mentira é o desejo natural de qualquer pessoa honesta. E ao sentirmo-nos vocacionados para viver na verdade, sentimos a obrigação de procurar a verdade do mundo e da história, mas sobretudo a verdade do ser humano em si mesmo e, em última instância, a fonte de toda a verdade que é Deus. A verdade do mundo implica o reconhecimento de que a natureza tem uma consistência própria, leis próprias que não dependem de mim. Eu só tenho de respeitar esta verdade do mundo porque o exige o meu bem pessoal, o bem dos meus semelhantes, incluindo os ainda não nascidos e o bem comum. A verdade do seu humano pede que eu reconheça a sua identidade própria de homem e mulher, seres diferentes que se completam principalmente no serviço à vida que lhes está confiado. A verdade é, de facto, o resplendor de Deus no rosto do mundo e em particular do ser humano. Por isso as relações deste com o mundo e com os outros, todas as relações sociais, para serem humanas e humanizantes, precisam de ser vividas na verdade, com exclusão de toda a forma de mentira, a começar por aquelas mentiras que ofendem o ser humano na sua dignidade, como são o falso testemunho, ou a calúnia; mas também o juízo temerário, porque sem suficiente fundamento. O 8º mandamento da Lei de Deus lembra-nos esta obrigação enraizada na própria natureza humana, quando recomenda: “Não levantar falsos testemunhos, não fazer juízos temerários ou de qualquer outra forma faltar à verdade”.
3.2. Por sua vez, só pode viver na verdade quem aceita percorrer os caminhos da justiça. Viver na verdade e viver na justiça são atitudes humanas fundamentais e inseparáveis.
A justiça social foi sempre decisiva para o bem estar dos cidadãos e das populações, mas na hora actual, com a crise económica que o mundo atravessa, a justiça social exige de todos nós e das instituições uma redobrada atenção. Quando falamos de justiça social, queremos dizer que o mundo é uma mesa posta por Deus para servir todos os cidadãos.
Sendo assim, os bens disponíveis no mundo têm um destino universal ou seja são para todos; os seus proprietários não são donos, mas somente administradores temporários; todo aquele que possui bens tem obrigação de partilhar com os pobres; os bens supérfluos são dos pobres.
A justiça social exige de todos e cada um de nós, antes de mais, respeito por todas e cada uma das pessoas. E este respeito pede que não só a cada pessoa seja dada a porção de bens materiais de que ela precisa para viver com dignidade, mas também e sobretudo que cada uma delas participe activamente no processo da produção destes bens e nas decisões sobre a sua distribuição. O processo de produção é o cumprimento do mandato original do criador para que o ser humano dominasse a terra, ou seja, interviesse para colocar os seus recursos capazes de serem devidamente utilizados pelos seres humanos todos. Os meios técnicos hoje existentes, por um lado facilitam este domínio, mas por outro também o dificultam sobretudo na medida em que substituem muitas pessoas e principalmente colocam num número mais reduzido de pessoas o exercício do direito de tomar decisões. A cada um deve ser respeitado o direito de decidir ou participar na decisão sobre aquilo que produz.
Sempre que uma pessoa está à margem do processo da produção ou lhe é negado o direito de decidir sobre o resultado do seu trabalho tem de ser considerado um excluído ou marginal e neste último caso um expoliado ou roubado. Todos sabemos que a exclusão e a marginalidade constituem uma das maiores pragas da nossa sociedade, na hora actual.
O respeito pelas pessoas a quem se destinam todos os bens criados obriga a respeitar também a natureza. Hoje felizmente há uma grande sensibilidade e muito generalizada quanto ao respeito para com a natureza, sentindo que se não preservarmos o universo estamos a hipotecar o futuro da humanidade. O mandato do génesis – “ dominai a terra” – quer dizer esse saber gerir, governar, sem destruir, o que Deus criou para todos os cidadãos, tanto as das gerações actuais como os das gerações futuras. A atitude da ecologia é assim uma responsabilidade acrescida para as gerações actuais e sobretudo para as suas instâncias de decisão. Tanto o 7º mandamento da Lei de Deus, que manda não roubar como o 10º, que manda não cobiçar as coisas alheias são um convite a pôr em prática a justiça social. Por sua vez a justiça social obriga-nos a todos a levar a sérios a dignidade de cada pessoa e seus direitos. Lembra-nos o destino universal dos bens e a obrigação da solidariedade universal que lhe está ligada. Lembra-nos o primado do bem comum sobre os interesses particulares de pessoas e grupos e sobretudo obriga a fazer a opção preferencial pelos pobres. Pobres são as pessoas excluídas do acesso aos bens essenciais, mas são também os grupos de pessoas e as regiões desfavorecidas. Aos cidadãos em geral, individualmente e em grupos, e principalmente aos poderes constituídos pede-se-lhes esforço conjugado de luta contra a pobreza. Aos cidadãos e às associações de cidadãos pede-se-lhes que participem activamente, na medida em que isso lhes for possível, nãos só nos processos da produção, mas também nas decisões quanto ao destino a dar aos bens produzidos. Aos poderes constituídos pede-se que exerçam a justiça social não só intervindo na equitativa distribuição dos bens, mas principalmente criando condições para que deixe de haver cidadãos de primeira e cidadãos de 2ª, para que não haja grupos humanos excluídos nem regiões que, por falta de condições objectivas, são sempre os parentes pobres, com níveis de pobreza acima de média.
É sabido que o desemprego está a ser a grande chaga social resultante de crise económica que vivemos. Em nossa região os níveis do desemprego estão pelo menos 2 a 3 pontos percentauis acima da média nacional. Por isso, em nome da Justiça Social, sentimo-nos na obrigação de fazer apelo aos poderes constituídos para que olhem para a nossa região, de facto desfavorecida e ajudem a criar as condições necessárias para que o desemprego e a fome sejam eficazmente combatidos, mesmo que isso signifique adiar outros grandes projectos de investimento. Primeiro é preciso dar de comer a quem tem fome e só depois pensar naquilo que se pode dispensar ou, pelo menos, adiar.
Que o Senhor nos ajude a preparar a Páscoa da Ressurreição e acrescer na consciência de que a Vida de todos e de cada um é o maior bem que é preciso defender e valorizar em todas as circunstâncias.

+Manuel R. Felício, Bispo da Guarda

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